Diante da presença de 700 000 pessoas nas ruas de Paris para protestar pelo massacre na redação do Charlie Hebdo é preciso lembrar que:
1.Durante os ataques mais recentes da aviação de Israel sobre Gaza, os protestos em solidariedade a população palestina foram reprimidos na França porque se considerou que poderiam se transformar numa ameaça a ordem pública;
2.Cartunistas e ilustradores solidários com a causa árabe em Israel chegaram a ser processados pelo Estado. Questionado, o primeiro ministro Manuel Valls se justificou: “Nós deveríamos ficar de braços cruzados diante da criatividade do ódio?”
3. Em 2006, um grupo de intelectuais de prestígio na mídia assinou um manifesto anunciando a aparição de uma quarta forma de ditadura dos tempos modernos. Depois do nazismo, do fascismo e do estalinismo, o manifesto falava do islamismo — que não é uma doutrina política, mas uma religião, que mobiliza perto de 1,5 bilhão de pessoas, ou um quarto da humanidade, reunindo homens e mulheres com diferentes visões de mundo e costumes bastante diversos.
Benvindo à duplicidade moral do século XXI.
O morticínio na redação do Charle Hebdo foi uma operação cruel e injustificável. Nenhum cidadão, em parte alguma do mundo, deve perder a vida em função de suas opiniões. O fato do assassinato coletivo ter sido um crime premeditado, sem dar chance de defesa às vítimas, apenas reforça seu aspecto perverso, inaceitável.
Nada disso nos proibe de lembrar que o direito de Charlie Hebdo expressar o ponto de vista de seus jornalistas e cartunistas sem restrições não deve ser confundido com a sustentação de suas opiniões políticas. A expressão “somos todos Charlie” pode gerar muitas confusões.
Num esforço supostamente didático, surgiu no país a conversa que tenta comparar Charles Hebdo e o Pasquim, o inesquecível jornal de humor feito no Leblon que chegou a vender 200 000 exemplares por semana durante a ditadura militar. É bom não exagerar nas primeiras impressões.
Estamos falando de publicações satíricas, dedicadas ao humor político. Podemos encontrar artistas geniais, nos dois lados do Atlantico. E só.
Mas ninguém tem o direito de iludir-se com puras formalidades nem ignorar o ponto essencial.
O Pasquim tinha lado. Extraia sua força de uma opção política clara: denunciava o regime militar e seus inimigos. Não fazia concessões nem permitia dúvidas a respeito. Não era um humor sem causa. Muito menos com a causa errada. Estava ao lado dos mais fracos.
No universo cultural europeu do século XXI, Charles Hebdo construiu uma relação ambígua com o racismo.
Assumindo aquela visão que classificava o islamismo como o quarto totalitarismo, o próprio editor da Charlie Hebdo disse que, para a revista, tanto o fascismo da Frente Nacional, a organização de extrema-direita francesa, como o que chamava de “fascismo islâmico” fazem parte da “mesma seara e contra eles não economizamos nossa arte”.
O fascismo de Jean Marie Le Pen — e outros líderes semelhantes que se espalham pelo Velho Mundo — tem um projeto de poder de Estado. É um movimento violento e nostálgico da velha ordem, que tenta restaurar pela força. Quer eliminar direitos conquistados, que representam avanços — parciais, limitados — rumo a uma situação de menor desigualdade. A opção Le Pen é um estado forte para submeter os deserdados da globalização a leis mais duras e severas, como mão de obra de segunda-classe — seja em casa, seja em seus países de origem.
O clero muçulmano mantém convicções que podem ser ou parecer retrógradas. Como em todas as religiões organizadas, seus líderes podem ser acusados de exercer o poder de forma autoritária.
Ali se encontram círculos fascistas — que também se manifestam no extremismo católico. Em julho de 2011, em Oslo, 76 pessoas morreram em dois atentados cometidos por um fundamentalista cristão, adversário assumido da imigração islâmica, admirador fanático do Estado de Israel.
Não há dúvida de que lideranças muçulmanas participam da resistência política e cultural de uma população segregada e diminuída em seus direitos, em particular no Oriente Médio, onde a atuação do Estado de Israel junto a seus vizinhos — e à própria população árabe no interior de suas fronteiras — contribui para criar um ambiente de enorme tensão em todo planeta.
Este é seu papel na cena global, sem relação com o fascismo de Jean Marie Le Pen. É por isso que são atacados. É por isso que o deboche é estimulado. Devem ser desqualificados — da mesma forma que, nos tempos do Pasquim, a ditadura lançava insinuais odiosas sobre a vida pessoal de lideranças da Teologia da Libertação.
O racismo é um antigo componente da cultura européia e é possível encontrar suas manifestações mesmo em textos de sábios insuspeitos do iluminismo. Mas há uma novidade recente.
Com o progresso científico, as noções que dividiam a humanidade em raças biologicamente inferiores e superiores deixaram de fazer sentido para as camadas mais cultas.
Está comprovado que nenhuma herança genética é capaz de explicar as diferenças de desenvolvimento entre povos e países. Surgiu, então, o fator cultural.
Procura-se definir uma hierarquia entre homens e mulheres pela visão de que há uma hierarquia entre culturas. Algumas seriam mais adequadas do que outras para promover o progresso social, que não seria produto de opções de natureza economica e política, mas dos valores tradicionais de cada povo.
Foi assim que se passou a explicar a hegemonia política-militar dos EUA em todo planeta pelos valores morais da religião protestante — embora outros povos, com os mesmos valores morais e religiosos, pudessem padecer de uma condição muito diferente. Ou a falta de desenvolvimento de países tropicais pela falta de amor ao trabalho duro de seus cidadãos — ainda que a jornada de trabalho de muito desses povos pudesse ser mais prolongada e estafante. E assim por diante.
O fator cultural encontra-se no eixo teórico do artigo ” Choque de Civilizações”, de Samuel Huntington. Publicado em 1993, ele construiu um novo quadro ideológico para justificar a atuação das grandes potências após a queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria — quando, mais uma vez, era preciso manter a hierarquia entre povos e paises, dominantes e dominados.
Para Huntington, todo esforço para criar um ambiente de convívio harmonico e cooperativo entre os povos, com respeito a pluralidade e a história de cada um, nada mais seria do que uma utopia risível, pois não há uma herança comum entre elas. “As diferenças entre as civilizações não são apenas reais; são fundamentais”, escreve, para acrescentar: “não vão desaparecer em pouco tempo. São muito mais essenciais do que as diferenças entre ideologias e regimes políticos.”
Ele reconhece que “diferenças não significam conflito, e conflito não implica necessariamente violência,” mas adverte: “ao longo dos séculos, as diferenças entre civilizações geraram os conflitos mais violentos e prolongados.”
Dividindo a humanidade em oito civilizações diferentes, Huntington enxerga um ambiente hostil para o chamado ocidente, cada vez mais mais ameaçado pelo progresso de outros povos de outras culturas. Nesse ambiente de risco, onde a posição de predomínio se encontra ameaçada, o “Ocidente (com maiúsculas)” está condenado a “manter o poderio econômico e militar necessário para proteger seus interesses” diante das demais civilizações.
Quem leu Edward Said já aprendeu a importância de estereótipos negativos sobre os povos árabes para consolidar um domínio de caráter imperialista naquela parte do mundo que abriga as principais reservas mundiais de petróleo, a principal riqueza estratégica dos últimos 100 anos.
Quem ler “O que a Europa deve ao Islam de Espanha”, de Juan Vernet, poderá descobrir a formidável contribuição dos povos árabes para a magnifica explosão cultural do Renascimento — e todas suas consequências — que muitas pessoas acreditam ter sido uma obra pura de artistas e intelectuais europeus.
A questão encontra-se aí.
A execução à bala da redação do Charlie Hebdo é inaceitável.
A tentativa de criminalizar o islamismo por este crime também é inaceitável. Lembra a piores tentativas de manipular consciências e reforçar preconceitos que inevitavelmente irão gerar novas tragédias.