Ignacio Ramonet: Uma reflexão sobre política externa dos Estados Unidos e a sua rivalidade com a China. Pensa, como alguns analistas, que a China será o grande rival estratégico dos Estados Unidos no século XXI? E que consequências pode ter isto para a marcha do mundo em geral e para o destino dos Estados Unidos?
Noam Chomsky: A China desenvolve-se de uma maneira muito eficiente. Começou no ano de 1949, quando conquistou a independência. Há uma expressão para isso no discurso norte-americano, diz-se “a perda da China”, é muito interessante... “a perda da China”... Não se pode “perder” algo do qual não se é dono. Mas, nos Estados Unidos, damos por assente que somos os donos do mundo, e se algum país se afasta do nosso lado, “perdemo-lo”...
A China é hoje uma produtora offshore das fábricas norte-americanas. As principais empresas dos EUA produzem na China, importam da China. Ou seja: as nossas principais empresas importam bens baratos da China e obtêm ganhos extraordinários. Uma empresa norte-americana pode dispor de uma mão-de-obra reprimida, muito barata, onde o Estado controla muito diretamente os trabalhadores; não tem de se preocupar com a contaminação e outras coisas: é uma forma muito inteligente de ganhar dinheiro. Assim, há vínculos comerciais, financeiros e industriais muito fortes. Ao mesmo tempo, a China tem as ambições normais de uma superpotência. Por exemplo, a China, se prestar atenção ao mapa, está rodeada ao Leste por um cordão de protetorados dos Estados Unidos que controlam as suas águas territoriais. Isso a China não gosta. Os chineses querem expandir-se pelas suas próprias águas offshore. Surge assim um conflito potencial bastante grave entre a China, por um lado, e os EUA e o Japão pelo outro. E esse conflito diz respeito ao conjunto do Pacífico Ocidental. É uma região onde o Japão, durante a sua época imperial, tinha todas as suas forças. E continua a controlar uma boa parte. E a China não gosta disso. Neste momento, os caças japoneses e chineses passam continuamente sobre ilhas que não têm nenhum interesse. Nalgum momento isto pode desembocar numa guerra.
Não obstante, muito se falou da nova potência da China no século XXI. Acho que há um tremendo exagero. O crescimento da China foi forte durante muitos anos, mas continua a ser um país muito pobre. Se reparar, por exemplo, no índice de desenvolvimento humano da ONU, acho que a China está na posição noventa e não sai daí. Tem problemas internos importantes, o movimento laboral está a romper as cadeias, há muitas greves, protestos, problemas ecológicos tremendos, as pessoas falam de poluição, mas é muito pior: há destruição dos recursos agrícolas, que são limitados; está a passar por extraordinários problemas que os Estados Unidos e a Europa não têm, continuando a ter uma enorme pobreza. E não está a ponto de se transformar numa potência hegemónica.O mesmo sucede entre os EUA e China; a política externa de Obama para Ásia é mandar forças militares para a Austrália, e construir uma enorme base militar numa ilha próxima à China. Não diz que é uma base militar, mas é-o certamente. Os Estados Unidos têm, a poucos quilómetros da China, a base de Okinawa, cuja população se opõe redondamente à sua permanência. O Japão controla esse território, e os EUA querem manter as bases nessa zona. E novas bases estão a ser construídas e a expandir-se com a frontal objeção da população e da China, que olha tudo como uma ameaça. E tem razão. Ou seja: há um confronto potencial não somente com os EUA, como também com os países vizinhos, como as Filipinas, o Vietname e o Japão, é claro. É um problema de tensão. Da mesma forma há um problema económico, uma tremenda interação económica, de produção, de finanças, de importação, etc. De maneira que certamente vai continuar a ser um tema importantíssimo nos assuntos internacionais.
De maneira que a pressão dos EUA e do Japão sobre a China, a partir do Leste, está a empurrá-la para a Ásia Central, e um dos desenvolvimentos recentes mais importantes dos assuntos mundiais é o estabelecimento do que se chama a Organização de Cooperação de Xangai (OCS) que tem a China como base, mas que inclui a Rússia, os Estados centrais asiáticos, a Índia, e o Irão como observador. Está a deslocar-se também para a Turquia, e talvez vá continuar a expandir-se para a Europa, com o que seria reconstituído algo parecido com a velha “rota da seda”, que saía da China e ia para a Europa. Washington não gosta disso. Os Estados Unidos pediram para ser observadores no seio da OCS, mas foi recusado; o Irão e outros países têm esse estatuto de observador, mas aos Estados Unidos foi negado. Aliás, a OCS pediu a saída de todas as bases militares norte-americanas da Ásia Central. A Ásia tem grandes recursos; o confronto atual com a Rússia está a empurrar o Kremlin a ter relações mais próximas, mais estreitas com a China, sendo a China a potência dominante e a Rússia menos. Mas é como um desenvolvimento natural, por assim dizer. A parte oriental da Rússia tem grandes recursos, minerais, petróleo, etc. E isso poderia permitir aproximar ainda mais a China da Rússia. Pode-se ver uma espécie de sistema eurasiano ou eurásico, com melhores vínculos, mais estreitos. Por exemplo, hoje pode-se tomar um comboio de alta velocidade desde a China ao Cazaquistão, e no entanto não se pode tomar um comboio de alta velocidade de Boston para a Europa, mas sim de Pequim ao Cazaquistão. Faz parte do desenvolvimento que estamos a ver e é algo bastante forte; e alguns estrategas norte-americanos consideram-no uma NATO com base na China. Talvez o seja. Talvez. Em tal caso, há grandes avanços, e tem razão ao dizer que são ameaças potenciais nos assuntos internacionais, que poderiam se transformar em perigosos.
Gostaria agora de lhe fazer duas perguntas sobre a comunicação de massas. A primeira é uma grande preocupação que existe, no mundo do jornalismo, sobre a crise da imprensa escrita. Há uma enorme crise, muitos jornais estão a desaparecer, muitos jornalistas estão a perder o emprego. E a pergunta é: o jornalismo de papel vai continuar a existir? Que consequências pode ter o desaparecimento do jornalismo de papel?
Não acho que seja inevitável. Há algumas exceções interessantes. Por exemplo, no México. Acho que o La Jornada é atualmente o segundo jornal diário mais importante, que se lê muito amplamente, ainda que os empresários não gostem disso de forma alguma, e por isso não anunciam nele; se repararmos, não há publicidade de marcas, só publicidade do governo; porque a lei mexicana assim o exige, exige que o governo faça a sua publicidade oficial em todos os diários. Assim, o La Jornada sobrevive, e pode ver que muita gente o lê. O La Jornada é um jornal diário de boa qualidade e está a sobreviver. E acho que não se trata de uma coisa impossível.
Na Declaração dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), um dos artigos, acho que é o 19, fala da liberdade de imprensa. E diz que a liberdade da imprensa tem dois aspetos: o direito a gerar uma informação livre do controlo governamental, mas também o direito de receber informação e de ter a oportunidade de gerar informação livremente. O que significa sem concentração de capitais. A imprensa rica, complexa e independente, do século XIX e princípios do XX, sucumbiu. Sucumbiu por duas causas: a primeira, a concentração de capitais, que significava que se investia grandes quantidades de capital na imprensa comercial privada. E a segunda, a dependência da publicidade. Quando se depende da publicidade, são os anunciantes que começam a ter impacto no jornal. Se virmos um jornal moderno atual, é um negócio; e como qualquer outro negócio, tem de gerar um produto com o seu mercado, esse mercado são as outras empresas que fazem publicidade; e os produtos são os leitores. Mas os produtos não subsidiam um jornal. Hoje o jornal vende publicidade às empresas, tal como a televisão. Não se paga quando se liga a televisão, mas a empresa, que é o canal, vende o público aos seus anunciantes; e é aí que se vê um grande esforço, onde está a parte criativa: a publicidade. Na indústria da televisão, a publicidade é o verdadeiro conteúdo. A história é simplesmente um recheio, o que vemos entre dois espaços publicitários. Essa é a estrutura básica da televisão comercial. Na imprensa escrita há um termo: o buraco das notícias. Como se faz? Primeiro põe-se a publicidade, que é o importante; e depois recheia-se um pouquinho aqui e lá com umas notícias [risos]. Essa é a estrutura natural dos meios de comunicação comerciais. Este tema foi uma batalha durante séculos. E o que se viu na Argentina recentemente: será que a liberdade de imprensa é apenas a liberdade das empresas privadas fazerem o que lhes dá na gana? Ou a liberdade de imprensa também teria de compreender o que diz a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos Humanos, ou seja: o direito das pessoas receberem informação de muitas fontes, e de terem a oportunidade de se juntarem, de gerar e produzir informação a partir de muitas fontes?
Recentemente esteve em Londres para visitar Julian Assange, o fundador da WikiLeaks, na Embaixada do Equador – eu tinha estado com ele nuns dias dantes – e, por outro lado, Edward Snowden, com as suas revelações, também demonstrou a existência de todo o sistema de vigilância, desmascarando algumas ações dos Estados, o poder dos Estados em matéria de vigilância e de ocultação da informação. Ou seja, por um lado, a WikiLeaks, por outro lado, fontes como Snowden, que utilizam a Internet, as redes sociais, que nos ensinaram muito, ultimamente, em matéria de informação. Pensa que este tipo de jornalismo novo é algo que se vai desenvolver num futuro próximo em termos de comunicação e de emancipação intelectual, com a tomada de consciência dos cidadãos?
A sua pergunta sobre os meios de comunicação impressos situa-se nesse contexto. Poderia haver meios impressos e com muita vitalidade, mas têm de ter uma responsabilidade pública. E quando se fala de subsídios governamentais, se o governo é democrático, significa subsídios públicos; significa que é o público quem participa para garantir um meio no qual a informação esteja disponível em toda uma gama de fontes; e que muitos grupos diferentes tenham a oportunidade de apresentar os seus próprios factos, as suas próprias interpretações, as suas análises, as suas investigações, etc. Essa seria uma versão enriquecida da liberdade de imprensa. E pode ser conseguida mas, tal como as demais formas de democratização, é preciso mobilização pública. As empresas privadas vão fazer o impossível para impedi-lo. Está aí a Argentina para prová-lo. Mas acontece em todos os lados.
A resposta, como à maioria das perguntas, é que depende do que façam os cidadãos. Sem lugar a dúvidas, qualquer sistema de poder vai impedi-lo tanto quanto puder, dentro das suas possibilidades. Assange está refugiado na Embaixada do Equador em Londres, e a Grã-Bretanha está a pagar muitíssimo para que não escape pela porta. Como sabem, Assange está em piores condições que as da prisão, porque na prisão pode-se ver a luz do dia, a não ser que esteja na solitária; mas ele não pode. Snowden está na Rússia, sabe o que ocorreu com o voo de Evo Morais, o presidente da Bolívia que voava de Moscovo para a Bolívia, e os países europeus – França, Espanha, e outros – intercetaram-no por ordem do Grande Amo em Washington... Uma coisa incrível! Finalmente, o avião teve de aterrar na Áustria. A polícia imediatamente entrou no avião para certificar-se de que Snowden não estava escondido na cabine. Estas são, diretamente, violações de protocolos diplomáticos, que mostram duas coisas; primeiro, a dedicação extrema do governo de Obama a castigar Assange, e depois, em segundo lugar, quão servil é a Europa ao Grande Amo norte-americano. Um fenómeno muito interessante.
Obama vai além, castigou mais whistleblowers do que qualquer outro presidente. Há uma lei nos EUA, a lei de espionagem durante a Primeira Guerra Mundial. Obama usou-a para evitar este tipo de revelações à sociedade, como fizeram Assange e Snowden. O governo vai impor o indizível para proteger-se do seu “inimigo principal”. E o “inimigo principal” de qualquer governo é a sua própria população. Há muitas provas disto que, aqui [na Argentina], se podem entender. Da mesma maneira que as grandes empresas privadas vão proteger o seu controlo tirânico sobre qualquer aspeto da vida dentro do possível; para estes whistleblowers, a luta por uma informação livre e transparente é uma coisa quase natural. Terão sucesso? Bom, é como saber se a ditadura argentina poderia voltar a tomar o poder. Isso depende das pessoas. Se Snowden, Assange e outros fazem o que fazem, fazem-no na sua qualidade de cidadãos. Estão a ajudar o público a descobrir o que fazem os seus próprios governos. Acaso existe uma tarefa mais nobre para um cidadão livre? E Obama castiga-os severamente. Agora, se isto vai continuar ou não, vai depender de como respondam os cidadãos.
Fonte: Le Monde Diplomatique. Tradução: Esquerda.net
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